Blacksilver (parte 4)


Belknap não conseguia manter sua pompa nem seu garbo com uma lança cravada em seu peito. Seu pé esquerdo ainda pressionava a pequena placa de pedra que ativava a mortí­fera armadilha.

Não fosse pelo viscoso veneno que já penetrava em sua circulação, amortecendo seus sentidos e nublando sua visão, o paladino de Corellon teria conseguido partir o cabo de madeira e se desvencilhar da parece onde se encontrava pregado. Pouco a pouco seus pensamentos se tornavam mais e mais desconexos, e as lembranças que tinha da tragédia que terminava de se abater sobre o grupo de guerreiros sagrados que comandava se esvaiam de sua mente.

Tudo corria bem até que passaram por uma cripta completamente destruí­da por explosões de fogo mágico. Sarcófagos quebrados, pontas de flecha e um forte odor de enxofre permeava a sala. Não haviam descoberto nenhuma das lendárias armadilhas da tumba de Ahram Artest, apenas alguns mecanismos desarmados ou emperrados como que se alguém já tivesse por elas passado.

O primeiro a cair, literalmente, havia sido Heglmeier. O alçapão sob seus pés abriu-se de maneira súbita e silenciosa, e não houve tempo para gritar, nem muito menos para clamar pela ajuda de seu deus, antes que a orbe negra de desintegração o apagasse para senpre da existência. Dali para frente a espiral de medo e horror se acelerou de tal maneira que em apenas alguns minutos ele já se encontrava sozinho em um escuro corredor. Baird ardeu em meio a inúmeras chamas disparadas de estátuas no formato de cabeças de dragão, sem que muito restasse de seu corpo carbonizado. Haidle desaparecera por completo, e seu destino o elfo apenas podia rezar para que tenha sido mais rápido e indolor do que o dele. Quando só restavam ele e Lassen, cinco imensas estátuas de pedra se animaram e bloquearam o caminho. Seu companheiro valorosamente as manteve engajadas em combate por tempo o suficiente para que Belknap conseguisse avançar para a última sala do complexo subterrâneo, onde a relí­quia sagrada que buscavam estava guardada. O som surdo e úmido de rochas se chocando contra uma superfí­cie macia e a esmagando também pareciam agora fragmentos de um sonho, uma última lembrança do altivo e alegre paladino que havia ingressado na ordem no mesmo dia que ele.

Alguma coisa sobre um juramento. Honrar sacrifí­cio. íšltimo selo. Ranger de engrenagens. Uma lança cortando o ar. Uma dor lacinante. Um gosto amargo na boca. Escuridão. Silêncio. Ascenção. Arvandor. Corellon. Paz.

***

Com um meneio da cabeça Blacksilver confirmou seu pedido, uma cesta de pães, queijos e carnes, além de sumos de frutas frescas para refrescar suas secas gargantas. As semanas que se passaram desde que a salvou da morte na tumba o ghaele gastou procurando pelos pais de Rune. Ela havia sido vendida por eles para um grupo de aventureiros em troca de um punhado de moedas de cobre, ela havia dito. Em alguns meses a jovem já havia aprendido as práticas de um ladino, pois sua habilidade manual era fantástica quando se lembrava que ela havia completado naquele mesmo dia apenas quinze primaveras. Rune não guardava rancor de seus pais, pois entendia a razão pela qual se viram forçados a vender sua única filha. As mudanças climáticas em Faerun arrasaram a vida de milhões nos últimos meses, o derretimento da grande geleira por alguma força oculta causava enchentes e secas ao longo de toda a terra. Sem ter como se sustentar com o trabalho no campo, o desespero e a fome os forçaram ao ato mais triste.

Ela ainda se lembrava das lágrimas nos olhos da mãe, o rosto contorcido de dor de seu pai, e na esperança que sussurravam em seu ouvido de que aquele era o melhor caminho a seguir, que junto daqueles cavalheiros ela teria muito mais chances de sobreviver do que com eles. os rostos esquálidos e os farrapor que vestiam eram a maior prova disso. Blacksilver não havia ainda conseguido descobrir se eles haviam ou não morrido após abandonarem a filha. Não sabia se a busca dos dois estava condenada ao fracasso desde o princí­pio.

Entregou uma fatia de pão a Rune e afagou seus cabelos carinhosamente. Durante todo o tempo que estiveram juntos a protegeu e a guardou como sua própria filha. Sentia por ela enorme afeição, e sua alma parecia estar completa pela primeira vez desde tempos imemoriais. Sentia finalmente o amor verdadeiro que tanto ouvia falar da boca dos Archons e não mais os invejava.

Apesar de todo o amor que sentia por ela, apesar de querer apenas sua felicidade, Blacksilver não conseguia apagar de seu coração uma pequena mancha que o corroia por dentro. A cada novo dia de busca pelos pais de Rune, imaginava como seria se finalmente os encontrassem e a famíia verdadeira estivesse novamente reunida. O que seria deles? Conseguiria ele viver sem a jovem que havia adotado como sua própria filha? Por mais que tentasse renegar o que realmente queria não podia negar: a última coisa que queria neste mundo era encontrar os pais de Rune. A contradição que o rasgava por dentro as vezes parecia demais para que pudesse suportar. A felicidade dela era o mais importante para ele, mas a única maneira de garantir que sua felicidade fosse completa significava o fim de sua própria razão de vida. Iniciava cada dia desejando que Rune nunca alcançasse a felicidade completa.

Estava tão absorto em seus pensamentos que não percebeu a figura encapuzada que entrou na estalagem e sentou-se numa mesa reservada no canto mais escuro. Não percebeu que a mesma figura já os seguia há mais de duas semanas. Não percebeu o olhar frio e cruel que recaia sobre ele e sua pequena amiga.

Stahl Lunn era um elfo negro. Um drow de Mezzoberranzan banido de sua cidade natal por suas alianças com os demônios dos nove infernos, eternos inimigos de Lolth, a rainha das aranhas. O drow esbarrou naquele estranho celestial por acaso em suas andanças, e quase não pode acreditar na oportunidade que se desenrolava perante seus olhos. Era ní­tido que o eladrin já trilhava o caminho da perdição. Sua pele não mais brilhava com a luz de Corellon, e seus olhos perolados se encontravam opacos e acinzentados. Se ele conseguisse completar a corrupção e entregar um ex-servidor do arqui-inimigo de Lolth í  dama negra, certamente seria aceito de volta entre os seus, e um lugar proeminente na escola de magia estaria praticamente garantido.

Pediu uma taça de vinho e sorveu vagarosamente enquanto observava a singular dupla que o destino havia unido. Sob seu capuz sorria maquiavelicamente, enquanto fazia as últimas notas mentais de seu plano. Quando tivesse terminado, o ghaele estaria indefeso, com a alma aberta para o sopro negro de Lolth. Ele aceitaria a rainha das aranhas de bom grado, pois sua alma teria sido tão por completo arrasada que a bênção profana seria para ele a única redenção.


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