Lovecraft, horror e RPG


Para quem não sabe, Call of Cthulhu é baseado nos contos do escritor norte-americano H.P. Lovecraft, nascido ainda no século 19, e que em vida teve pouco reconhecimento fora da comunidade leitora de revistas pulp de ficção e fantasia.

No curto espaço de 16 anos escreveu contos e novelas que influenciaram toda uma geração de escritores de horror, que emprestavam para suas próprias obras o imaginário criado por Lovecraft, com seus tomos sombrios e deuses grotescos.

Cultuado por uns, era solenemente ignorado pela crí­tica especializada e pela comunidade editorial americana. Foram necessários muitos anos para que seus textos pudessem finalmente encontrar a atenção da grande audiência que merecem. Hoje é posto no mesmo pedestal ocupado por Edgar Alan Poe, e suas obras traduzidas para dezenas de idiomas.

Mas o que entre as palavras deste americano da Nova Inglaterra pode causar tantos calafrios na espinha de seus leitores? O que é este horror que ele invoca em seus leitores?

O horror é uma forte impressão de repulsa ou desagrado, acompanhada ou não de arrepio, gerada pela percepção, intuição, lembrança de algo horrendo, ameaçador, repugnante. Como podemos ver, não precisamos ver um rio de sangue, cabeças sendo decapitadas ou um homem vindo para cima de nós com um enorme machado nas mãos para que esse sentimento invada nossas mentes. A simples sugestão de que algo não está certo, que nossa própria existência corre perigo já é o suficiente para levar qualquer uma se enfiar debaixo das cobertas com os joelhos batendo uns contra os outros. E era exatamente nisso que Lovecraft se mostrava um mestre, deixando seus leitores de cabelo em pé e com medo de apagar as luzes antes de dormir.

A abertura de seu conto mais famoso, O Chamado de Cthulhu, é a perfeita sí­ntese do horror de Lovecraft: “Na minha opinião, a melhor coisa do mundo é a incapacidade da mente humana em correlacionar tudo o há nela. Nós vivemos em uma plácida ilha de ignorância no meio de negro e infinito mar, e não fomos feitos para nele viajarmos. As ciências, cada uma perambulando em uma direção, até agora pouco nos afligiram. Porém, algum dia, o acumulo de tantas peças desconexas de conhecimento irá nos abrir horrendas visões da realidade, que nosso destino repousará entre a insanidade das revelações ou a fuga da luz mortal para a paz e a segurança de uma nova era de ignorância.”

No universo de Lovecraft, as leis, emoções e interesses dos homens não tem nenhuma validade ou importância na imensidão do cosmos. As verdades do universo são tão aliení­genas e horrí­veis que a simples exposição a elas pode resultar na insanidade ou no suicí­dio. Apesar da humanidade buscar incessantemente o conforto e a verdade, a escolha entre um dos dois é a única opção possí­vel.

Seus contos são quase sempre narrados na primeira pessoa, testemunhos de quem esteve perto demais das verdades do cosmos, quer por vontade própria, quer pelo mero acaso. A loucura é palpável na narrativa, a negação a qual se submete o narrador frente aos terrí­veis segredos que a ele são revelados. A mente procurando na lógica mentiras capazes de proteger o que resta da mente, escapando do colapso total para os horrores da realidade.

Lovecraft não esteve sozinho em suas incursões pelo mundo dos mitos de Cthulhu. Dezenas de escritores fascinados por seu estilo e idéias macabras continuam até hoje a expandir o imaginário criado por ele. Os Deuses ancestrais, os horrores das profundezas do espaço, os tomos de conhecimento profano, centenas dos elementos produzidos pela mente de Lovecraft povoam contos e histórias de amigos e admiradores.

Para se ter uma idéia da influência de Lovecraft, recentemente uma pesquisa feita nos Estados Unidos apontou Psicose como o filme mais eletrizante de todos os tempos. O suspense e a ansiedade criados pelas mãos precisas do mestre Alfred Hitchcock continuam até hoje assustando gerações de cinéfilos. Esta obra prima da sétima arte teve seu roteiro baseado no livro homônimo do escritor americano Robert Bloch, que, vinte e dois anos depois, continuou a saga de Norman Bates no livro Psicose II, de 1982. Hoje considerado um dos mestres da ficção de horror moderna, foi durante sua adolescência protegido literário de Lovecraft, o homem que Stephen King considera ser, acima de qualquer suspeita, o maior escritor de horror do século 20.

Outro contemporâneo de Lovecraft também conhecido por muitos dos fãs de fantasia e ficção é o autor de Conan, Robert E. Howard. Além de criar o bárbaro que tanto gostamos de imitar em nossos personagens de RPG, escreveu diversos contos onde elementos do imaginário Lovecraftiano faziam participações especiais.

Além destes notórios escritores que se mantinham um constante diálogo postal com Lovecraft, outros menos conhecidos do público em geral também foram muito importantes para consolidar o que hoje conhecemos como os mitos de Cthulhu. Clark Ashton Smith, Frank Belknap Long, August Derleth e Robert W. Chambers contribuí­ram com horripilantes idéias e noções que rapidamente se tornaram parte do imaginário do fã do estilo de Lovecraft. Ubbo-Sathla, os Cães de Tindalos, o Habitante da Escuridão, O Rei em Amarelo, todas obras fundamentais e que com justiça foram incorporadas ao jogo de Call of Cthulhu, acrescentando novos horrores para desafiar a sanidade dos pobres investigadores.

Mas nem só de Lovecraft vive o mestre de um jogo de terror. Outros autores possuem tanta capacidade quanto ele para assustar seus leitores, e a mudança de enfoque pode pegar seus jogadores despreparados, garantindo ótimos sustos e diversão certa. Algernon Blackwood é um deles. Em seus contos ele penetra muito mais na psiquê humana que Lovecraft, que o considera o mestre das atmosferas estranhas. Os salgueiros, seu conto mais famoso, e considerado por muitos o melhor, mostra dois amigos viajando por um rio em meio í s árvores do tí­tulo, penetrando em um território de segredos e mistérios, onde a raça humana não tem direito de estar. Seus contos mexem com a angústia que cada um de nós, mesmo os mais felizes, guardamos no fundo do peito.

Outra leitura fundamental é Clive Barker, muito mais brutal e direto que seus companheiros de estilo. Beirando a perversão, seu terror psicológico mostra o ser humano levado aos extremos, negando os princí­pios básicos que teoricamente o classificam como um ser racional. Afinal de contas, que monstro é mais aterrorizante que o próprio homem, capaz de matar e mutilar alguém de sua própria espécie apenas para satisfazer sua curiosidade?

O horror é muito mais do que zumbis correndo atrás de assustados personagens com um revólver na mão, temendo por seus miolos. Algumas vezes o maior dos inimigos está dentro de você mesmo. Todos esses escritores nos mostraram como extrair um olhar de pânico dos olhos de alguém. Com eles podemos aprender muita coisa, e fazer de nosso jogo de sexta í  noite muito mais divertido e horripilante.


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